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O argumento, que é uma reconstrução que remete a Hume, apesar de válido, só
pode estar correto se suas premissas forem verdadeiras. Desse modo, a tarefa de Putnam
será reconfigurar a noção de fato. Ele usará, como estratégia, a apresentação do
solapamento da dicotomia fato e valor.
Segundo a divisão apresentada por Putnam, há uma necessidade no tocante à
inclusão dos enunciados em uma ou outra classe de enunciados analíticos ou sintéticos.
Como já foi dito, se um enunciado (cognitivamente relevante) não for analítico,
necessariamente esse enunciado (cognitivamente relevante) será um enunciado não
analítico. Forçosamente, em razão da dicotomia, todo enunciado não analítico é um
enunciado sintético. De modo análogo, todo enunciado não ético (correlacionado a
“deve”) é, necessariamente, um enunciado de fato. (2008, p. 32).
Essa fórmula dicotômica repercute de maneira clara no modo como os objetos
são configurados, pois a distinção, inflada até tornar-se dicotomia, subsidia o formato
metafísico assumido, no qual ou se é um enunciado de fato, ou se é um enunciado de
valor. Não há, aqui, lugar para a classe que Quine, recuperado por Putnam, chama de
“cinza”, mas tão somente para as classes “preto” e “branco”.
A respeito do que temos falado, cabe lembrar que os “valores” em questão
sempre são tratados, dentro da história da dicotomia, como valores éticos, omitindo-se,
habitualmente, qualquer emergência de valores que não sejam éticos10. Putnam alega
que “Desde Hume o fato de que existam muitos tipos de juízos de valor que não são em
si mesmos de uma variedade ética (ou moral) tende a ser colocado de lado nas
discussões filosóficas da relação entre os (chamados) valores e os (chamados) fatos”
(2008a, p. 34).
Assim, os valores não éticos não têm sido considerados, e a dicotomia, inflada
dessa maneira, omite uma importante categoria que poderia lançar nova luz ao
problema. É isso que Putnam também resgatará dentro de sua estratégia argumentativa.
Putnam faz uma importante consideração sobre a natureza da dicotomia. Sua
reflexão é que se tivermos o binômio fato/valor considerado somente no âmbito de uma
importante distinção conceitual filosófica, não se seguirá dela nenhuma metafísica, do
mesmo modo que não se segue nenhuma metafísica do fato de distinguir-se entre
10
Temos, também, como exemplo de valores que não são nem éticos ou não éticos os valores
estéticos. Entretanto, estes padecem do mesmo problema considerado na dicotomia, pois não são factuais
e cognitivos. Putnam deixa isso claro na parte II do livro “O Realismo de Rosto Humano”, de 1999,
intitulada “Ética e Estética”.
Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 49 a 76]