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Os positivistas lógicos fizeram a totalidade dos juízos cognitivamente relevantes
repousarem nas categorias de sintético ou analítico. Desse modo, dada a universalidade
da aplicação da dicotomia metafísica, todos os juízos (cognitivamente relevantes)
estariam inseridos em uma ou outra categoria. Portanto, os enunciados científicos
deveriam ser classificados segundo esse estatuto. A física teórica, por exemplo, estaria
no conjunto de enunciados que deveriam ser classificados dessa maneira para que
pudessem receber a chancela de racional. Isso quer dizer que tais enunciados só seriam
significativos caso pudessem ser formulados de modo a gerar uma resposta que indicará
se eles são analíticos ou sintéticos, distintamente (2008a, p. 25).
Quine, ao contrário, empreende uma sequência que vai em direção à dissolução
completa não só da dicotomia, mas também da distinção4 entre o analítico e o sintético.
Se o sintético e o analítico fossem exemplificados de forma metafórica pelas cores
“branco” e “preto”, estariam, seguindo a metáfora, mais próximo da cor “cinza”, o que
simbolizaria o caráter não distinguível de ambos os enunciados5:
O saber de nossos pais é um tecido de sentenças. Em nossas mãos, ele se
desenvolve e transforma, por meio de nossas próprias revisões e adições mais
ou menos arbitrárias e deliberadas, mais ou menos diretamente ocasionadas
pelo estímulo contínuo de nossos órgãos sensoriais. É um saber cinza pálido,
preto para o fato e branco para a convenção. Mas não encontrei razões
substanciais para concluir que exista nele algum fio totalmente preto ou
totalmente branco (QUINE, 1963, p. 406 apud PUTNAM, 2008a, pp. 25-26).
Segundo Putnam, esta ideia de que não há qualquer distinção entre as duas
classes de juízos não deve ser levada tão longe, uma vez que ele próprio aceita que
4
Em Os dois dogmas do empirismo ele rejeita a distinção entre os chamados “juízos analíticos”
e os “juízos sintéticos”: “Minha proposta atual é que é um contrassenso, e a base para muitos outros
contrassensos, falar de um componente linguístico e de um componente factual na verdade de qualquer
enunciado individual. Tomada coletivamente, a ciência tem sua dupla dependência da linguagem e da
experiência, mas essa dualidade não é significativamente delineável nos enunciados da ciência tomados
um a um. (QUINE, 2011, p. 66). Embora pareça, ao contrário do que pensa Putnam, que Quine rejeita a
distinção absoluta, que tem como consequência a dicotomia. ( ver QUINE, 2011, p. 71). Não obstante, a
interpretação de Putnam está corroborada pelo texto supracitado.
5
Putnam lembra que Quine, ao lançar uma crítica ao positivismo lógico em seu artigo intitulado
Carnap and Logical Truth, dirige-se, em primeiro lugar, para a distinção clara e estanque que os
positivistas lógicos fazem com respeito aos aspectos inter-teóricos, como a elegância (contraparte
convencional) e o teste experimental dos enunciados hipotéticos (o que os positivistas chamam de ‘fato’).
Segundo ele, um elemento de convenção é uma característica que poderá, quando adotada anteriormente,
ser posteriormente submetida a testes. A citação de Quine que Putnam recupera escapa ao âmbito teórico
específico à linguagem científica, mas não à linguagem que os positivistas lógicos considerariam factual,
ou seja, falseável por poderem ser submetidas a testes baseados em experiências concretas. Desse modo,
recaem tanto os enunciados científicos da física, que são sintéticos, quanto o “saber de nossos pais”, no
âmbito do factual, por serem ambos passíveis de verificações a posteriori.
Redescrições - Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 49 a 76]