Revista Redescrições | Page 30

30 139 e ss.). Os círculos de cometimento com a família, o grupo ou o país esclareceriam a noção de lealdade como “uma obrigação moral universal” de se agir com justiça (ibidem, p. 142). Aqui o papel da literatura (o que contamos a respeito de algo) é novamente enfatizado por ele, isso em contraste ao formalismo construtivista tradicional, científico ou filosófico. No entender de Rorty, as descrições históricas, etnográficas ou ficcionais sobre as questões referentes a dor e a humilhação contribuíram intelectualmente muito mais para esse “progresso moral” 51 do que os tratados de filosofia e religião. Para ele, “solidariedade” seria um vocabulário que superaria a noção kantiana de “obrigação moral” (moralische Pflicht)52, na medida em que Kant levou apenas em consideração a razão, a racionalidade e a obrigação, sem enfatizar questões como a compaixão diante da dor ou o remorso diante da crueldade 53. A falha da abordagem kantiana, segundo Rorty, é que Kant fez os sentimentos de compaixão e benevolência parecerem dúbios ou “motivos de segunda ordem” que visam a não crueldade, em outros termos: “Ele [Kant] fez da “moralidade” alguma coisa 51 Nussbaum entende que isso não depende só das narrativas de filósofos ou cientistas, especializados em suas áreas: “... uma das mais importantes formas de parceria para o progresso moral será entre filósofos e pessoas com entendimento psicológico, incluindo artistas, psicoanalistas sagazes, e, mais importante, professores.” (NUSSBAUM, 2007, p. 960). 52 Para Kant inclinações, como campaixão, empatia ou comiseração, ou desejos não seriam garantia para ações conforme a moral. Cf. KANT, 1785 (GMS), p. 23. De fato, Kant afirma que as “inclinações” (Neigungen) não teriam “um valor absoluto” (einen absoluten Werth) que justificasse que as desejemos, pelo contrário, “o desejo universal” (der allgemeine Wunsch) por parte “de cada um dos seres racionais” (eines jeden vernünftigen Wesens) seria em se livrar completamente das inclinações. Cf. GMS, p. 65. Devemos lebrar também que, no entender de Kant, em sua Teoria do Direito (Rechtslehre), uma “obrigação de direito” (Rechtspflicht) não é uma “obrigação de virtude” (Tugendpflicht). Assim como “a legislação ética” (die ethische Gesetzgebung) segue um tipo de obrigação, que pode ser diferente da legislação jurídica (die juridische Gesetzgebung). Cf. KANT, 1907 (MS), p. 220. 53 Esta crítica envolve naturalmente as posições de Habermas e Rawls, ver: RORTY, 1997, p. 140. Para Rorty, o sentido de “obrigação moral” também se perderia quando relacionamos o mesmo com a noção de “confiança que mantém unida uma família” (RORTY, 1999, p. 78). Em seu entender, a força do termo “obrigação moral” se desvanece quando o contrastamos com coisas que fazemos naturalmente por nossa família. Para a maioria das pessoas, responder às necessidades dos membros de nossa família “é a coisa mais natural do mundo”. Por isso, não existiria “obrigação moral” entre mãe e filho ou marido e mulher. Rorty vê como “não natural” (unnatural) o fato de, p. ex., desejarmos nos alimentar bem, enquanto nossos filhos passam fome. Para ele, questões como essa definem quem somos e, por isso, nossas reações são naturais. Trata-se aqui da própria concepção de eu ou “auto-concepção” (selfconception) que temos. No entanto, nada disso impede que “o desejo de alimentarmos um estranho faminto possa se tornar tão fortemente entrelaçado na minha concepção de eu quanto o desejo de alimentar minha família”. Neste caso afirma Rorty: “O desenvolvimento moral no indivídu o, e o progresso moral na espécie humana como um todo, é uma questão de re-marcar ‘eus’ humanos (remarking human selves) a fim de ampliar a variedade de relações que constituem esses ‘eus’ (selves)” (RORTY, 1999, p. 79). Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 7 a 48]