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oakeshottianos quanto gadamerianos (cf. RORTY, 1980, pp. 318 e ss.; pp. 357 e ss.;
RORTY, 2000, pp. 122 e ss.), mas não se contenta com eles. Rorty compreende que a
hermenêutica supera o confinamento epistemológico37 e entende que os âmbitos da
epistemologia e da hermenêutica utilizam formas diferentes de discurso. Ele atesta que,
por um lado, a epistemologia possui um “discurso normal”, que é conduzido dentro de
um conjunto de convenções, acordadas por todos, sobre questões sobre o que conta
como contribuição relevante, no que consiste em responder a uma questão, o que
consiste em ter um bom argumento para tal resposta ou uma boa crítica a ela (RORTY,
1980, p. 320). Por outro lado, a hermenêutica teria um discurso chamado “anormal”,
que ocorre quando alguém adere ao discurso e não quer saber das convenções ou,
simplesmente, as deixa de lado (ibidem, p. 320).
Na compreensão de Rorty, o discurso hermenêutico “anormal” (ou “existencial”,
segundo uma perspectiva gadameriana) seria sempre parasita do discurso “normal” 38.
Este é um ponto não percebido pela hermenêutica tradicional: A hermenêutica só é
possível diante de um dado componente educacional, que implica em uma prévia
aculturalização (acculturation) (RORTY, 1980, p. 365). No processo de educação
(education, Bildung) deve ocorrer, segundo Rorty, uma transposição em vermos nós
mesmos “en-soi”, antes de pensarmos em nos vermos “pour-soi”. O que ele quer dizer
com isso? Primeiramente, enxergamos nós mesmos sob o aprendizado inevitável de
narrativas cotidianas tradicionais, gerais e científicas geradas por nossa cultura, e apenas
37 Rorty separa bem as funções desses dois tipos de conhecimento. Primeiro, ele aponta o
sentido da epistemologia: “A noção dominante de epistemologia é a de que para ser racional, para ser
completamente humano, para fazer o que devemos, nós temos que estar aptos a encontrar concordância
(acordos) com outros seres humanos. Construir uma epistemologia é encontrar a máxima quantidade de
interesse comum com os outros” (RORTY, 1980, p. 316). Cf. RORTY, 1991a, p. 37. Depois ele apresenta
sua falha: “Para epistemologia, ser racional é encontrar o conjunto correto de termos, nos quais todas as
contribuições deverão ser traduzidas, se o fim é tornar possível a concordância.” Rorty esclarece então a
diferença: “A epistemologia vê os participantes como unidos naquilo que Oakshott chama de uma
universitas – um grupo unido por interesses mútuos na realização de um objetivo comum. A hermenêutica
os vê como unidos naquilo que ele chama societas – pessoas cujos caminhos de vida coincidiram (have
fallen together), unidos pelo civismo em vez de por um objetivo comum ou, menos ainda, por um
interesse comum (common ground)” (RORTY, 1980, p. 318).
38 Essa é uma das questões que a atitude “existencialista” frente a objetividade e racionalidade,
típica da hermenêutica de Gadamer, não percebeu. Cf. RORTY, 1980, p. 366. A representação ontológica
da realidade também foge ao âmbito anti-essencialista de Rorty, o que o afastaria da concepção
hermenêutica puramente heideggeriana e isso também na esfera do direito. Algo que, no âmbito do
direito, oporia-se também a percepção de Lênio Streck, em que pese ser reconhecida a importância da
abordagem filosófica essencialista da realidade à hermenêutica. Cf. STRECK, 2003, pp. 186-187.
Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 7 a 48]