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vida. Na cidade começa a despedida das cavernas de todo tipo, de suas agonias e de seu
torpor.
II
Por ser a cidade o local da decisão a respeito dos desprovidos de destino, estes
os mais diferentes possíveis, pode aqui elevar-se primeiramente a pergunta sobre a
diferença entre afortunados16 e desafortunados. O que são os seres humanos segundo a
sua essência? São eles sujeitos pobres ou ricos? São os penalizados (Lastträger 17) ou os
amados pelos deuses? Os seres humanos manifestam-se agora nas respostas que eles
concedem a essas perguntas. O ser é as respostas e as respostas são o ser 18. Sob a lei
marcial das respostas, dividem-se os espíritos e os destinos. Uma variedade irredutível
separa um mortal do outro, no menor espaço possível. Como as realidades humanas não
cabem em qualquer depoimento uniforme, pode o coro trágico de Sófocles esclarecer
que muitas coisas espantosas ou terríveis existem no mundo, mas nada mais espantoso
do que o ser humano. Para o saber dos cidadãos 19 ordinários, o ser humano é um ser
pobre, que a partir de suas poderosíssimas deficiências (Mängel) ambiciona a riqueza. O
ser humano é tido por eles como um animal no qual sempre está algo faltando. Deste
modo falam os seres determinados20 sobre si mesmos e os cidadãos sobrecarregados de
16 Os “Glücklichen” seriam aqueles providos de felicidade. (N.T.)
17Esta palavra refere-se aqueles que carregam o ônus de penalidades atribuídas aos deuses.
(N.T.)
18 “Sein ist Antworten, Antworten ist Sein”. (N.T.)
19 A palavra “Bürgerwissen” refere-se ao saber comum dos habitantes de uma cidade.
Novamente, não empreguei o termo “burguês” devido ao seu inicial significado medieval de “habitantes
dos burgos”, isto é, “de castelos, mosteiros e suas cercanias muradas”. (N.T.)
20 Nesta frase (“So reden festgestellte Wesen von sich selbst...”) o autor usa a expressão
“festgestellte Wesen“ que se remete ao uso da expressão de Nietzsche “festgestellte Thier”, que aparece
no livro Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse. Leipzig: C.G. Naumann, 1886, p. 62). Nesta
passagem é afirmado “que o ser humano é o animal que ainda não é determinado” (“dass der Mensch das
noch nicht festgestellte Thier ist”), isto é, ele seria algo como que um animal que ainda não tem
qualidades ou habilidades já dadas ou estabelecidas, que não age apenas por instintos determinados. Neste
sentido, o homem tem qualidades não determinadas, porque atua com capacidades que superam eventuais
delimitações naturais e que os elevam, em razão de suas habilidades. No final desta passagem (62.) do
livro, Nietzsche critica os seres humanos que atuam sob o influxo da religião (cristianismo) e, em
contraposição, re