Revista Redescrições | Page 117

117 (Klugheit), a partir da qual emanações operam até nas artes atuais. No correr de uma metamorfose de dois mil anos, a aventura da outra crença (Andersgläubigkeit) 6 passou dos sacerdotes para os filósofos, e destes para os artistas, os últimos herdeiros da questão citadina7 (der städtischen Frage), a respeito dos poderosos, dos eficientes, dos verdadeiros e dos bons. A filosofia surgiu quando os magos gregos, os iatromantes, ou médicos clarividentes, dos tempos do transe e da magia, estabeleceram-se nas cidades e aprenderam a se subjugar às regras das mediatidades urbanas. O que é a sabedoria agora? O que é uma vida boa? O espírito grego encontra, na tarefa de poder inquirir as condições de felicidade diante do horror do mundo, a sua medida padrão. Quando Sócrates aparece diante de seus juízes, está-se a discutir em sua pessoa a outra crença (Andersgläubigkeit). Um modo de ver (Sehweise) celebra, em um único homem, a sua entrada no palco das ideias. O que foi trazido a julgamento não é apenas o fato8 do ateísmo, o qual os conservadores 9 acusadores10 foram capazes de formular. O que está mesmo sob a acusação é a mobilidade interna de uma outra crença, na qual o antigo fiel fareja a incredulidade. Para eles, os sérios, os não seduzidos (Nichtverführbaren), é incompreensível o que Sócrates exercita em suas indagações tentadoras. Eles veem o monstro pensante procurar razões para o sagrado, o encoberto, o fundamental. Tal pensamento não é por si só já um crime? Quem, se não um criminoso em sua intencionalidade11, arriscaria demandar fundamento para os fundamentos do mundo? Quão inquietante é, por conseguinte, o fato de que este homem não expressa qualquer último fundamento, mas move-se como um amigo dos demônios na região das causas últimas. Com isso, ele não age como se os demônios precisassem de nossos discursos? Ter entendido que esta confiança flexível e abismal encarna-se no princípio da inteligência (Klugheit) urbana12 constitui, por si só, a proeminência de 6 O que poderia ser também traduzido por “heterodoxia”. (N.T.) 7 Isto é, da questão comunal, urbana ou da cidade. (N.T.) 8 A palavra “Tatbestand” também significa, no jargão jurídico alemão, “tipo legal”. (N.T.) 9 que o adjetivo “bieder”, traduzido aqui por “conservador”, significa também “pequeno burguês”. (N.T.) 10 Os instauradores do processo contra Sócrates. (N.T.) 11 Traduzi “aus Innerlichkeit” por “intencionalidade” e não por “interioridade” ou mesmo “contemplatividade”, por interpretar o sentido como uma expressão da interioridade e não como a interioridade mesma. (N.T.) 12 O argumento do autor lembra em muito a conexão apontada por Cícero, nas Tusculanae disputationes (Livro V, 5), na qual é afirmado que as cidades devem sua formação à filosofia. Numa espécie de hino afirma Cícero sobre a filosofia: “Tu (filosofia) fundaste as cidades, tu convocaste os Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 115 a 124]