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(Klugheit), a partir da qual emanações operam até nas artes atuais. No correr de uma
metamorfose de dois mil anos, a aventura da outra crença (Andersgläubigkeit) 6 passou
dos sacerdotes para os filósofos, e destes para os artistas, os últimos herdeiros da
questão citadina7 (der städtischen Frage), a respeito dos poderosos, dos eficientes, dos
verdadeiros e dos bons. A filosofia surgiu quando os magos gregos, os iatromantes, ou
médicos clarividentes, dos tempos do transe e da magia, estabeleceram-se nas cidades e
aprenderam a se subjugar às regras das mediatidades urbanas. O que é a sabedoria
agora? O que é uma vida boa? O espírito grego encontra, na tarefa de poder inquirir as
condições de felicidade diante do horror do mundo, a sua medida padrão.
Quando Sócrates aparece diante de seus juízes, está-se a discutir em sua pessoa a
outra crença (Andersgläubigkeit). Um modo de ver (Sehweise) celebra, em um único
homem, a sua entrada no palco das ideias. O que foi trazido a julgamento não é apenas o
fato8 do ateísmo, o qual os conservadores 9 acusadores10 foram capazes de formular. O
que está mesmo sob a acusação é a mobilidade interna de uma outra crença, na qual o
antigo fiel fareja a incredulidade. Para eles, os sérios, os não seduzidos
(Nichtverführbaren), é incompreensível o que Sócrates exercita em suas indagações
tentadoras. Eles veem o monstro pensante procurar razões para o sagrado, o encoberto,
o fundamental. Tal pensamento não é por si só já um crime? Quem, se não um
criminoso em sua intencionalidade11, arriscaria demandar fundamento para os
fundamentos do mundo? Quão inquietante é, por conseguinte, o fato de que este homem
não expressa qualquer último fundamento, mas move-se como um amigo dos demônios
na região das causas últimas. Com isso, ele não age como se os demônios precisassem
de nossos discursos? Ter entendido que esta confiança flexível e abismal encarna-se no
princípio da inteligência (Klugheit) urbana12 constitui, por si só, a proeminência de
6 O que poderia ser também traduzido por “heterodoxia”. (N.T.)
7 Isto é, da questão comunal, urbana ou da cidade. (N.T.)
8 A palavra “Tatbestand” também significa, no jargão jurídico alemão, “tipo legal”. (N.T.)
9 que o adjetivo “bieder”, traduzido aqui por “conservador”, significa também “pequeno
burguês”. (N.T.)
10 Os instauradores do processo contra Sócrates. (N.T.)
11 Traduzi “aus Innerlichkeit” por “intencionalidade” e não por “interioridade” ou mesmo
“contemplatividade”, por interpretar o sentido como uma expressão da interioridade e não como a
interioridade mesma. (N.T.)
12 O argumento do autor lembra em muito a conexão apontada por Cícero, nas Tusculanae
disputationes (Livro V, 5), na qual é afirmado que as cidades devem sua formação à filosofia. Numa
espécie de hino afirma Cícero sobre a filosofia: “Tu (filosofia) fundaste as cidades, tu convocaste os
Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 115 a 124]