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na cidade, talvez ouvindo seu célebre daimon. Jesus teve de retirar-se para o deserto, para
resolver uma querela com o demônio que, enfim, punha a ordem da sociedade contra os
desejos de Jesus de fundar uma religião. Em ambos os casos, essa nascente individualidade
se fez na inauguração das técnicas de solidão.
Só civilizações já em alto grau de desenvolvimento, como a grega antiga e a
hebraica, puderam gerar solitários como Sócrates e Jesus. Solitários temporários, claro,
mas, ainda assim, solitários. A partir daí centenas de filósofos, religiosos e outros puderam
se comprometer com técnicas variadas de solidão. O homem comum também ganhou uma
tal capacidade, sem precisar sequer lançar mão do encontro com qualquer figura vinda do
exterior. Com a escrita e a leitura, os homens puderam ver que o que levavam para o
processo de solidão eram eles mesmos, em forma de dupla reflexiva, a conversa entre o eu
e o si-mesmo. A solidão dos renascentistas assim se fez. A solidão dos modernos se fez
ainda de modo radical, sendo que a própria conversa interior já como algo que nem parecia
uma conversa a dois, mas uma conversa consigo mesmo, uma conversa estranhamente não
tautológica. O romantismo a partir de Rousseau viveu essa última caraterística.
Assim, quanto mais civilização mais condições de se colocar em prática a solidão.
Ora, tendo desenvolvido essa explicação, para dar conta da expressão de Thomas
Macho, acabo por dar todos os elementos para explicar também a minha afirmação. Ou
seja, nenhuma solidão é efetivamente uma solidão. Retiramo-nos em dupla, o si-mesmo e o
eu, no mínimo. Por isso nosso temor da solidão só se justifica em pessoas que não se
acostumaram com a reflexão. Pessoas acostumadas à reflexão, à resolução de dramas
interiores, sabem que nem na morte poderão estar sozinhas. Aliás, principalmente na morte,
estarão em conversa consigo mesmas, exercerão o pensamento.
Podemos aqui lembrar a própria definição de pensamento de Platão: a conversa da
alma consigo mesma. Ora, isso nada mais é que os processos levados a cabo por Jesus e
Sócrates, agora disseminados, aperfeiçoados e tornados possíveis para o homem comum,
que afinal de contas lendo, escrevendo e se vendo obrigado a ter seus próprios
pensamentos, está sempre em reflexão. Podemos ficar sozinhos, mas jamais em completa
Redescrições – Revista online do GT de Pragmatismo, ano V, nº 3, 2014 [p. 111 a 114]