Inominável Nº 2 | Page 20

Um pacotinho de açúcar a ser vertido numa chávena de chá fervente.

O cantinho de papel, que nem há nada foi rasgado com a ajuda de dois dentes, balança por entre os vapores na iminência de se precipitar no líquido mate, mas é seguro com dois dedos e amarrotado junto com o resto do pacote.

Dois dedos de unhas envernizadas de vermelho e nem uma lasca, um descuido, nada mais que o verniz rebrilhando na pele lisa das mãos, um castanho muito leve que é também a cor dos braços nus: como se o sol se tivesse descuidado apenas o tanto que desse àquela pele aquele tom levemente tisnado.

Maria do Rosário a tomar o chá da tarde.

O chá muito quente escorre-lhe nas paredes do corpo, e Maria do Rosário frui esse conforto vagamente doloroso, enquanto mantem a chávena dependurada, muito quieta, muito direita, a dois palmos da mesinha, uma peça engraçada que ela um dia trouxe de uma feira, metal reciclado de bidons de gasolina que a artesã lhe disse que na aldeia havia demasiados a alimentarem tractores e motores de rega.

Maria do Rosário completamente sozinha desde o dia vinte e sete.

E ao poisar a chávena, faz-se um ruido de loiça contra loiça que se repercute pelo metal da mesa, e não terá sido mais do que o silêncio a fazer-se notado.

Maria do Rosário recosta-se nas almofadas em tons de verdes e azuis, riscas alternadas muito debotadas que ela ajeita de modo que a cabeça lhe repouse no fofo que é a espuma com que um dia, faz já muitos anos, encheu cada uma e, depois, fechou-as com uns pontarelos de linha e assim tinham ficado, até agora.

Maria do Rosário sozinha desde aquela quinta-feira.

Ninguém mais a quem possa dizer: esta ou este é de família. Nem tio ou primo ou os correspondentes no feminino, e filhos nunca os pariu. Que ela nem sequer teve um aborto. Nunca ocupou e convenceu-se, até, de que era estéril, se bem que soubesse que nunca tinha ido para homem desprevenida, ou, na hora do desfecho, ela não permitia que se derramassem nela humores de macho. Tinha sido assim, mesmo com os dois maridos, esses que, ainda que estivessem vivos, e não estavam, nem assim seriam de família, que marido não teria nada do seu sangue, nem dos seus genes.

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Chá sob o guarda-sol

por Maria de Fátima Santos