Inominável Ano 2 Inominável Nº6 | Page 62

62

Escarlate sentou-se, por fim. As luzes ao longe contrastavam aguçadamente com a escuridão que a cercava. A ela e à rapariga.

A rapariga, Ignis, caminhava de um lado para o outro, umas vezes manobrando distraidamente o punhal que trazia, outras lançando pequenas chamas para o chão, vendo a neve a derreter a seus pés quando entrava em contacto com o fogo. Era mais impaciente do que Escarlate, menos resignada e daria tudo para estar no centro da vila, em vez de estar ali.

Dali a pouco Escarlate seria substituída pela guardiã de Ignis, e o seu turno ficaria completo por aquela noite. Ignis, por sua vez, tinha ainda algumas horas à sua frente antes de poder juntar-se à festa de Carnaval no centro da vila, que costumava durar até de manhã.

O som de passos na neve deixou Ignis em alerta, mas antevendo a forma da sua guardiã por entre as sombras, não se sobressaltou.

Escarlate levantou-se, passou a sua própria lança e espada a Sora e sorriu para Ignis.

- A festa está longe de terminar. – Apontou.

Como que sublinhando a afirmação de Escarlate, a música pareceu subir de tom, mas talvez tenha sido apenas causado pelo silêncio a que as três mulheres se remeteram, de forma a ouvirem o ruído que vinha de longe.

Sora sorriu.

- É Carnaval e o Carnaval não tem exactamente um fim. Vai-se arrastando até ao ano seguinte.

De certa forma, era verdade. Demorava semanas até as decorações das casas serem retiradas, os doces que se distribuíam nessa noite continuavam a ser partilhados durante meses, e à medida que o ano ia passando e um novo Carnaval se anunciava, o rumor ia subindo de tom até ser de novo hora de festejá-lo. Não havia máscaras neste Carnaval; havia magia.

Escarlate bocejou, tocou no ombro de Ignis, num gesto que era ao mesmo tempo de carinho e encorajamento, e despediu-se. Pensou em passar pela festa antes de se recolher, mas estava demasiado cansada e os seus pés acabaram por arrastá-la para o caminho de volta a casa.

Sora guardou a espada no cinto, espetou a lança na neve e estendeu as duas mãos fechadas na direcção de Ignis, incitando-a a optar. A rapariga olhou para a sua guardiã e em vez de indicar com um dedo a mão que escolhia, fez com que as suas próprias mãos irrompessem em chamas, pousando-as sobre as de Sora, que arquejou, sorvendo o ar frio da noite. Ignis riu quando Sora abriu a mão esquerda, agora suja com o chocolate que derretera. Depois, fechou as mãos flamejantes e estas voltaram à sua cor normal, pálida.

Todas as noites havia dois responsáveis a guardar a entrada de Aperus. Os habitantes da vila revezavam-se; novos ou velhos, possuía cada um o que era necessário para proteger aquele pedaço de terra no topo do mundo. Para começar, tinham fogo que lhes saía das mãos com facilidade, que os aquecia e iluminava. Depois, como protecção e, quando necessário, como arma, tinham as lanças e as espadas ou punhais, os paus ou os arcos, de acordo com o que mais lhes aprouvesse. Alguns – como Sora e Escarlate tinham feito – partilhavam armas, por não terem preferência. Ignis elegia o punhal: era perita a manejá-lo contra qualquer inimigo que se aproximasse o suficiente para que ela o apunhalasse, e a atirá-lo de forma certeira para o mesmo efeito a quem não se atrevesse a chegar perto.

O inimigo só sabia que era o inimigo quando já era tarde demais para ser outra coisa qualquer.

A princípio, escutando em silêncio os distintos barulhos da noite, não notaram um leve ruído de passos a subir a montanha. Foi já quando um rosto – onde só se distinguia practicamente o branco dos olhos no emaranhado de trapos sujos que parecia cobri-lo dos pés à cabeça – assomou no topo da montanha que Sora se levantou, mas Ignis chegou lá primeiro: a parte romba do punhal, o cabo negro robusto de madeira esculpida, acertou em cheio no peito do desconhecido. Por momentos ela conseguiu ler nos olhos dele surpresa e dor; depois, ele levou a mão ao peito e caiu inerte com um baque surdo no chão alvo.

Carnaval