Calma penada
Disparo porta fora, o céu parece roxo agora, estou em
choque: porque é que ela me escondeu que já não trabalha
aqui? Está desempregada? Mudou de emprego? Porque não
me contou? E se não está aqui, onde está? Onde passa os
dias? Sinto o ar a cair aos meus pés, com os pulmões a
seguirem-no, a puxarem-me as entranhas, recomponho-me,
tento pensar, tento parar, mas o meu corpo dispara em passo
apressado, vou voltar a casa, não, não tenho chave, vou para
casa da mãe dela, à hora que chegar já ela lá está com as
miúdas.
*
Há aquelas pessoas que não se recordam de pedaços do
trajecto diário, quando conduzem, parece que o carro anda
sozinho, afirmam, eu, sinto o mesmo em relação a este dia e,
no geral, à minha vida, sou um condutor desatento, era uma
questão de tempo até falhar uma curva, passar um sinal
vermelho, atropelar um peão, peão esse que, ironicamente,
sou eu.
Chego à porta, recomponho-me o melhor que consigo e
bato duas vezes. Ninguém abre, posso jurar que ouvi vozes.
Ouço a janela a abrir e a cabeça da minha sogra aparece na
janela.
António?
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