Detectives Selvagens 1 - Setembro 2014 | Page 86

TIAGO CORTE-REAL cimento, imediatamente rodeados por pés descalços e facas reluzentes. Mas a duração destas miragens ocasionais eram ainda mais reduzidas que a sua frequência. O porto derreteu– se, os barcos afundaram e pescadores regressaram ao anonimato. Olhou mais uma vez. À sua frente lá estava o mesmo mercado do peixe, as mesmas vendedoras estridentes e as mesma carrinhas frigorificas que levavam o peixe para o Alentejo, Beiras e Norte Transmontano. Enquanto pensava em tudo o que lhe fugia, Menstap atirava ao ar uma velha moeda de bronze, perdido no torpor adocicado com que a Lisboa de hoje o presenteava. As sombras do final do dia iam largas pelos telhados da Baixa e a janela claustrofóbica do quarto era agora pouco mais que um adorno decorativo. Em cima de uma mesa de madeira esverdeada, no canto oposto à porta, o busto de um jovem político disfarçado de estadista elogiava as virtudes da equitatividade, do nivelamento entre hemisférios e da vitória democrática que a queda de um qualquer ditador representava. Não que Menstap o ouvisse ou, se fosse esse o caso, que alguma vez o viesse a compreender. Distraído, deixou a moeda cair ao chão e com ela as memórias do velho porto. Pensava que todos os que deixara para trás eram agora a mesma pessoa e isso incomodava–o. Pai, três irmãos mais velhos e uma meia irmã ainda criança, amigos de infância ou vizinhos de uma vida, todos cobertos pelo mesmo 86