Detectives Selvagens 1 - Setembro 2014 | Page 85

MENSTAP OU A CERTEZA DO ACASO N ão regressava a casa há demasiado tempo. Aquela cortina de chuva persistia há meses, talvez anos, e começava a borrar tudo o que ao de leve indiciasse memória ou saudade. As imagens foram as primeiras a ir, debilitadas pela sua condição precária de suporte temporário. As duas colinas gémeas do lado norte da aldeia, o tapete vermelho salpicado pelas árvores de tamarindo que se estendiam por todo o vale ou os rostos dos idosos reunidos na praça, tudo junto numa amálgama promíscua de realidade e imaginação. Até mesmo Lampedusa, coisa de há poucos anos, lhe parecia agora um sonho tirado de um folheto turístico, daqueles que encontrava diariamente nas mostras das agências de viagens, e que por algumas centenas de euros prometiam sete noites de pura felicidade, tudo incluído. Mas nem tudo tinha ficado para trás. Ainda há dias, ao passar na rua oposta ao mercado do peixe nas docas, viu o porto velho de Adulis aparecer–lhe trémulo à frente dos olhos. Os barcos acabados de chegar, carregados de homens de olhar cansado, atracavam com estrondo junto ao velho cais de madeira, esperando–os um enxame ruidoso de mulheres de vestes coloridas com alguidares de vime à cabeça. Cardumes de peixe eram atirados em vagas saltitantes desde os pesqueiros para o chão quente de 85