MENSTAP OU A CERTEZA DO ACASO
N
ão regressava a casa há demasiado tempo.
Aquela cortina de chuva persistia há meses,
talvez anos, e começava a borrar tudo o que
ao de leve indiciasse memória ou saudade. As imagens foram
as primeiras a ir, debilitadas pela sua condição precária de
suporte temporário. As duas colinas gémeas do lado norte da
aldeia, o tapete vermelho salpicado pelas árvores de
tamarindo que se estendiam por todo o vale ou os rostos dos
idosos reunidos na praça, tudo junto numa amálgama
promíscua
de
realidade
e
imaginação.
Até
mesmo
Lampedusa, coisa de há poucos anos, lhe parecia agora um
sonho tirado de um folheto turístico, daqueles que
encontrava diariamente nas mostras das agências de viagens,
e que por algumas centenas de euros prometiam sete noites
de pura felicidade, tudo incluído.
Mas nem tudo tinha ficado para trás. Ainda há dias, ao
passar na rua oposta ao mercado do peixe nas docas, viu o
porto velho de Adulis aparecer–lhe trémulo à frente dos
olhos. Os barcos acabados de chegar, carregados de homens
de olhar cansado, atracavam com estrondo junto ao velho
cais de madeira, esperando–os um enxame ruidoso de
mulheres de vestes coloridas com alguidares de vime à
cabeça. Cardumes de peixe eram atirados em vagas
saltitantes desde os pesqueiros para o chão quente de
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