Detectives Selvagens 1 - Setembro 2014 | Page 61

O charco E ra um charco, castanho de lama e chuva, entre a terra batida e a desolação de não haver nada numa área tão grande além de uma antiga fábrica cor-de-rosa onde ocasionalmente se realizavam exposições e feiras de artesanato. Havia demasiado ar naquele espaço. Sob os arcos brancos da antiga Companhia das Águas formavam-se correntes de ar, um ar imenso e tão solitário que nada mais tinha que fazer e por isso brincava, corria e assobiava entre os arcos como se fosse um fantasma. Às primeiras chuvas de Outono nascia ali o charco, naquele ambiente espectral e pneumónico, refúgio de umas pequenas rãs que de vez em quando saltavam como se o fantasma existisse mesmo e andasse a atirar pedrinhas ao charco por querer torná-lo menos estático e choco. A minha avó costumava levar-me pela mão até esse charco no Inverno para eu ver as rãs, encasacava-me toda, punha-me um cachecol ao pescoço e um gorro a abafar os caracóis e deixava-se ficar comigo ali, as duas tão quietas a ouvir os uivos das correntes de ar e à espera que a primeira rã decidisse saltar e animar aquela superfície lamacenta. No Verão os meus pais tinham-me comprado uma tartaruga, o único animal de estimação que eu podia ter por causa das alergias a todos os outros, ao chocolate, aos morangos e às laranjas. Chamei-lhe Relíquia. Eu pensava nas 61