O charco
E
ra um charco, castanho de lama e chuva, entre a
terra batida e a desolação de não haver nada
numa área tão grande além de uma antiga
fábrica cor-de-rosa onde ocasionalmente se realizavam
exposições e feiras de artesanato. Havia demasiado ar
naquele espaço. Sob os arcos brancos da antiga Companhia
das Águas formavam-se correntes de ar, um ar imenso e tão
solitário que nada mais tinha que fazer e por isso brincava,
corria e assobiava entre os arcos como se fosse um fantasma.
Às primeiras chuvas de Outono nascia ali o charco, naquele
ambiente espectral e pneumónico, refúgio de umas pequenas
rãs que de vez em quando saltavam como se o fantasma
existisse mesmo e andasse a atirar pedrinhas ao charco por
querer torná-lo menos estático e choco. A minha avó
costumava levar-me pela mão até esse charco no Inverno
para eu ver as rãs, encasacava-me toda, punha-me um
cachecol ao
pescoço e um gorro a abafar os caracóis e
deixava-se ficar comigo ali, as duas tão quietas a ouvir os
uivos das correntes de ar e à espera que a primeira rã
decidisse saltar e animar aquela superfície lamacenta.
No Verão os meus pais tinham-me comprado uma
tartaruga, o único animal de estimação que eu podia ter por
causa das alergias a todos os outros, ao chocolate, aos
morangos e às laranjas. Chamei-lhe Relíquia. Eu pensava nas
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