Detectives Selvagens 0 - Julho 2014 | Page 97

INTUS ET IN CUTE Esmurro a mesa. A mesa de pinho que, Entretanto, me atira para o soalho A folha com a minha criação; A folha que cai levemente, Como se de uma árvore caísse, Sabendo que está morta, cansada, estéril, Sem nada para dar ao mundo, Sem sabedoria alguma para ensinar, Sem vida. Caio em mim, repentinamente. Deixo a cadeira bater com os cascos no soalho. Assento os pés no chão. Esbofeteio a má disposição, Sopro na vela da metafísica e apago-a… E, como se fosse cravar a eternidade, Cravo na folha uma assinatura de mim: Escrevo sob a última palavra o meu nome – Álvaro Reis. (E capricho no S para que todos saibam Que não foi um Reis, foi o Reisssss.) Debaixo da portada da janela, Sorri-me um raio de sol – São horas de dar vida à minha própria vida. Vou à bacia, e a água que vejo é a de ontem. Abulicamente obstinado, não busco a água de hoje. Lavo o rosto com a água de ontem. (Hoje vejo que sempre fiz do ontem o hoje, Que sempre fiz do passado o presente, Que sempre fiz com que o futuro nunca se fizesse.) 97