LOURENÇO BRAY
como Jesus Cristo. Andei, andei, andei, os meus círculos cada
vez mais apertados e rápidos, uma espiral elíptica para o
buraco negro do ralo, olhos fechados, acenando a pescadores
e peixeiras que me diziam adeus. Era tudo tão bonito, a areia
quente nos meus pés, as gaivotas a rir de piadas de gaivotas,
os barquinhos ao longe, dissolvendo-se no horizonte...
Quando o guarda me veio buscar, encontrou-me estatelado
no chão, inanimado. Reparei no outro prisioneiro que
meteram lá na Gaiola para fazer reset ao meu isolamento,
um brasileiro chamado Edmundo que me disse olá e sorriu.
Devo ter desmaiado do calor e das tonturas de andar assim
as voltas. Nem lhe cheguei a falar. O Neves foi simpático e
deu-me de beber de uma caneca de ferro presa por uma
corrente a uma torneira e o Edmundo deu-me umas
chapadinhas na face, para recuperar a cor. Não me apetecia
andar, mas uma bastonada motivacional surtiu o seu efeito,
de modo que me pus de pé e caminhei aos tropeções,
algemado, nos túneis escuros do forte onde os meus olhos
cegos da luz agora nada viam. Cantava muito bem o
Edmundo, só falei uma vez com ele, mas ouvi-o cantar nos
chuveiros.
O guarda Neves tirou-me as algemas e trancou-me de
novo na cela. Esperei um bocadinho até os meus olhos se
habituarem ao escuro e depois inspeccionei tudo. Detectei
sinais evidentes de bricolage ilícito: a câmara de filmar estava
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