Detectives Selvagens 0 - Julho 2014 | Page 60

LOURENÇO BRAY como Jesus Cristo. Andei, andei, andei, os meus círculos cada vez mais apertados e rápidos, uma espiral elíptica para o buraco negro do ralo, olhos fechados, acenando a pescadores e peixeiras que me diziam adeus. Era tudo tão bonito, a areia quente nos meus pés, as gaivotas a rir de piadas de gaivotas, os barquinhos ao longe, dissolvendo-se no horizonte... Quando o guarda me veio buscar, encontrou-me estatelado no chão, inanimado. Reparei no outro prisioneiro que meteram lá na Gaiola para fazer reset ao meu isolamento, um brasileiro chamado Edmundo que me disse olá e sorriu. Devo ter desmaiado do calor e das tonturas de andar assim as voltas. Nem lhe cheguei a falar. O Neves foi simpático e deu-me de beber de uma caneca de ferro presa por uma corrente a uma torneira e o Edmundo deu-me umas chapadinhas na face, para recuperar a cor. Não me apetecia andar, mas uma bastonada motivacional surtiu o seu efeito, de modo que me pus de pé e caminhei aos tropeções, algemado, nos túneis escuros do forte onde os meus olhos cegos da luz agora nada viam. Cantava muito bem o Edmundo, só falei uma vez com ele, mas ouvi-o cantar nos chuveiros. O guarda Neves tirou-me as algemas e trancou-me de novo na cela. Esperei um bocadinho até os meus olhos se habituarem ao escuro e depois inspeccionei tudo. Detectei sinais evidentes de bricolage ilícito: a câmara de filmar estava 60