Detectives Selvagens 0 - Julho 2014 | Page 49

MONSANTO – TRÊS FRAGMENTOS sem piedade as cidades veneradas. Um pouco mais abaixo há outra inscrição, mas numa caligrafia diferente e que, a julgar pelos contornos mais definidos das letras, é mais recente: dois homens olharam atravez das grades da prizão, um viu a lama e o outro as estrelas. Sei de um prisioneiro que não viu dois erros ortográficos graves, entretido que estava a olhar para lama, para estrelas... Os erros incomodaram-me tanto que não descansei enquanto não esgravatei aqueles dois 'z' até serem dois buracos irregulares no estuque. Primeiro tentei reconvertê-los em 's' mas era impossível. Optei por esburacar o estuque todo, como fazia aos meus cadernos com a borracha azul dura que raspava o papel até fazer um buraco. Assim posso imaginar que está lá um 's'. Sou excelente a imaginar coisas. É uma qualidade muito útil, mas é preciso cuidado e não é qualquer um que é bom nisso. Há coisas que, quando as imaginamos, nos fazem sentir mal e é completamente inútil passar por isso se não for necessário. # Ouvi psst, psst, da janela da prisão. ─ Psst! Chega aqui ó! Levantei-me e aproximei-me da janela, arrastando o pequeno cobertor puído. O quadrado azul ofuscava-me e, a contra-luz, vi a silhueta de duas pequenas orelhas a assomar 49