A democracia sob ataque | Page 22

E deram vazão – com ou sem intenção – a um gigantesco aparato de corrupção , que envenenou o Estado e a gestão pública e se infiltrou pelas veias da sociedade , trazendo consigo um inédito protagonismo do Judiciário .
Não se tratou de governos corruptos ou de um partido vocacionado para o aparelhamento do Estado . O que prevaleceu foi uma concepção de governo e de governança que escancarou as portas do país para uma intensificação , sem precedentes , da apropriação privada do Estado , dos desvios de recursos públicos , da troca de favores e da transferência ilícita de verbas .
O impeachment de Dilma Rousseff foi a conclusão dramática desse processo . Representou basicamente a perda de controle do PT sobre os termos do jogo por ele mesmo posto em movimento , tanto no plano fiscal e econômico , quanto no plano da gestão política das alianças . Suas causas e razões são profundas , têm a ver com erros de condução política , com o esboroamento de uma coalizão governamental , com o mergulho do país num quadro de crise econômica profunda . Não deveria ser reduzido a um “ golpe ”, por mais que manobras “ golpistas ” possam ter ocorrido : não foi o resultado de uma ação de adversários ou inimigos , mas de aliados . Pensá-lo como um golpe é transferir a dinâmica do processo para zonas externas ao ator principal ( no caso , o PT ) e enveredar por um caminho que não inclui a autocrítica , mas somente a crítica moralizante dos “ outros ”, que são todos condenados em bloco como inimigos .
Com o impeachment , exacerbou-se o que já estava em curso desde 2010 : a política perdeu capacidade de coordenar a si própria e de articular o social , que ficou sempre mais entregue à exacerbação dos nichos e das individualidades , tudo devidamente impulsionado pela dinâmica das redes sociais e da mídia ( impressa e eletrônica ). Ao ser assim deslocada , a política foi superada pela condenação moral , a análise política cedeu em favor do julgamento ético , o realismo se deixou sobrepujar pelo cálculo de custos , perdas e danos . A contestação do sistema e o controle do governo – a crítica política democrática – deixaram de ser feitas e foram substituídas pela mágoa , pela indignação , pela denúncia , invariavelmente impulsionadas por uma retórica radicalizada , que só fez dividir a sociedade .
A efervescência das redes sociais passou a expressar este novo estado de espírito , refratário à política e aos políticos . Criou-se assim um mundo à parte , de cidadãos indignados movidos à internet , um nicho que se liga à vida real pela recusa à política
20 Marco Aurélio Nogueira