Sociedade | Gustavo Monteiro | revista @ cidadenova . org . br
Valores e desafios da convivência social
Passado , presente e futuro no marco temporal das terras indígenas
JUSTIÇA Adiamento de decisão no STF pode dar brecha para violência e desaparecimento de tribos inteiras
Constituição Federal de 1988 : demarcação às terras é chamado " direito originário "
Luene Karipuna
O ANO É 1988 . O Brasil se organiza para a elaboração de uma nova Constituição Federal . Durante os debates sobre a inclusão dos direitos indígenas , o indígena e ativista Ailton Krenak , vestido de terno branco , inicia seu discurso olhando fixo para a tribuna do Congresso Nacional . “ Eu espero não agredir , com a minha manifestação , o protocolo dessa casa ...”, diz o então jovem líder indígena , com pausas dramáticas , enquanto pinta o rosto de vermelho com a mão . “ O povo indígena tem um jeito de pensar ”, diz ele , enquanto retira com os dedos a tinta de um recipiente nas mãos e continua a pintar o nariz , a testa , todo o rosto ... “ Tem um jeito de viver , tem condições fundamentais para a manutenção da sua vida , da sua existência e da sua cultura que nunca colocaram em risco sequer a existência dos animais que vivem ao redor das terras indígenas , quanto mais a dos seres humanos .”
Já com a tinta nas pálpebras , continua : “ E hoje , nós somos o alvo de uma agressão que pretende atingir , na essência , a nossa confiança de que ainda existe dignidade , de que ainda é possível construir uma sociedade que sabe respeitar os mais fracos , que sabe respeitar aqueles que não têm o dinheiro para manter uma campanha incessante de difamação ...” Olhando as palmas das mãos vermelhas , ele conclui : “ que saiba respeitar um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas . Um povo que habita casas cobertas de palha , que dorme em esteiras no chão não deve ser identificado como um povo que é inimigo dos interesses do Brasil e que coloca em risco qualquer desenvolvimento . O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de km ² do Brasil ”.
A Constituição aprovada naquele mesmo ano legitimou a demarcação das terras indígenas com o chamado “ direito originário ”, garantindo a esses povos a condição de donos dos territórios ancestrais , sendo obrigação da União a demarcação das terras ocupadas . Enquanto esta matéria está sendo escrita , o STF adiou mais uma vez a discussão sobre a tese do chamado “ marco temporal ”. Na prática , isso pode dar brechas para a expulsão de tribos inteiras que não consigam comprovar que estavam nos territórios antes de 1988 , e processos antigos de demarcação de terras podem ir por água abaixo .
Só no primeiro semestre de 2022 , houve o desaparecimento de toda uma aldeia Yanomami , que está em território rico em minérios em Roraima , depois da denúncia do estupro de uma criança da tribo por parte de garimpeiros ilegais . Uma jovem indígena de 15 anos desapareceu enquanto voltava de um cursinho profissionalizante , também em Roraima . Seu corpo só foi encontrado 3 semanas depois , em estágio avançado de decomposição e amarrado a uma árvore . Dia 5 de junho , o jornalista inglês Dom Phillips e o servidor da Fundação Nacional do Índio ( Funai ) Bruno Araújo Pereira desapareceram depois de visitarem a terra indígena do Vale do Javari , no Amazonas , lugar ameaçado por madeireiros .
14 | Cidade Nova | Julho 2022