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26 | Cidade Nova | Março 2022
Protagonistas | Daniel Fassa | revista @ cidadenova . org . br
Eles escolheram fazer a diferença

Corrida de obstáculos e amor

RESILIÊNCIA A história de Neide Santos , mãe , atleta e educadora que transformou suas dores na força motriz de um projeto social transformador
" AS PESSOAS têm vários conceitos de felicidade . As pessoas têm vários conceitos de amor . Eu aprendi a amar os filhos dos outros . O Mark veio ao mundo para me ensinar a amar os filhos dos outros e não amar somente os meus .” Essas palavras são de Neide Santos , fundadora do projeto Vida Corrida . Mark é seu filho primogênito , assassinado aos 21 anos , por um garoto de 14 , durante um assalto no Capão Redondo , duas décadas atrás .
Do luto pela tragédia que “ inverteu o ciclo natural da vida ”, nasceu a ONG que tem transformado as ruas de um dos bairros mais violentos de São Paulo . Se tivesse vivido a infância que toda criança merece , “ talvez aquele menino não tivesse puxado o gatilho ”. Hoje , graças ao projeto liderado por Neide , meninos e meninas como ele têm a oportunidade de praticar esportes como atletismo , basquete , tênis e futebol . O projeto atende 400 meninos e meninas de 6 a 16 anos , além de 400 jovens mulheres .
“ Eu tenho certeza de que a mãe daquele menino o ama como eu amo meu filho . O perdão é libertador . Eu me libertei a partir do momento em que perdoei . E perdão é amor ”, afirma a líder comunitária . Quem vê seu sorriso largo e sincero como o de uma criança não imagina que essa senhora de 61 anos traga na bagagem tantas provações .
Baiana de um vilarejo da região de Porto Seguro , Neide perdeu o pai muito cedo . A mãe , sem condições financeiras de criar os três filhos , entregou cada um para uma família diferente criar . Mas a promessa de vida digna logo se mostrou vã . Aos seis anos de idade , ela se viu submetida a trabalhos forçados em uma oficina de costura na cidade de São Paulo . Lá sofreu “ todos os abusos possíveis que uma criança pode sofrer ”. Não podia sair , ter contato com outras crianças e muito menos brincar .
Após seis longos anos de exploração , Neide foi finalmente libertada e encaminhada pelas autoridades competentes a uma nova família . Já tinha 12 anos quando recebeu seu primeiro documento , descobriu seu nome completo – Marineide Santos Silva – e foi à escola pela primeira vez . As aulas de Educação Física eram as mais esperadas : “ o esporte era minha brincadeira predileta , eu não faltava de jeito nenhum , era minha diversão , era aquilo que me foi negado ”. Particularmente talentosa na corrida , ouviu de um professor que poderia ser atleta olímpica . Desde então , nunca mais parou de correr .
Reencontro
O sonhado reencontro com a mãe e os irmãos aconteceu aos 14 anos , quando seus familiares se mudaram da Bahia para a capital paulista . Junto da alegria , a responsabilidade : a mãe foi trabalhar como empregada doméstica em tempo integral na casa de uma família ; Neide teve que abandonar os estudos para cuidar da casa e dos irmãos , que agora eram seis , além de fazer bicos como costureira para ajudar no seu sustento . Nas horas vagas , corria pelas ruas do Capão Redondo , incentivada pelo professor de Educação Física , com quem manteve contato apesar de estar fora da escola .
Nessa época conheceu o homem que se tornaria seu marido e pai de seu amado Mark . Era um atleta apaixonado por futebol . Junto dele , ela participou de movimentos de luta por moradia popular , assumindo o risco de ser ativista em um contexto de ditadura militar . Com muito esforço , conseguiu para a mãe uma casa da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo ( COHAB ), programa por meio do qual adquiriria também a sua , anos depois .
Os primeiros anos do casamento foram de extrema privação . Neide trabalhava em uma oficina de costura , mas não se adaptou . Decidiu então trabalhar por conta , como costureira dia-

26 | Cidade Nova | Março 2022