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Dois minutos e meio até as nuvens | [email protected] Mini crônicas áreas Visão privilegiada Por Clarice Freire A autora é pernambucana e publicitária de formação, criadora da página Pó de Lua que deu origem ao livro homônimo publicado pela Editora Intrínseca, finalista do Prêmio Jabuti em 2017 MINHAS PERNAS pareciam feitas de pedra fria na- quela hora tão alta da noite. Carregavam o cansaço parado, um dos piores cansaços que conheço. Ne- nhuma posição me salvava do desconforto de não poder esticar os joelhos. No frio, eram dois incômo- dos gelados no meio das minhas canelas inquietas. Muito tempo sentadas, nossas andanças ficam sedentárias. Calma, já vou pousar. Pensava como se fosse pássaro. Sei que o avião leva 20 minutos só no processo de descida. Já contei. Assim como leva dois minutos e meio até tocar a primeira nuvem. E algumas horas até os fins do mundo. Bom para ele. Uma aeronave desce mui- to rápido, pensei. Já os meus processos ladeira abaixo normalmente são bem mais velozes. Venço qualquer um em descidas catastróficas. Mas o céu também não é longe para meus olhos fechados e alma bem aberta. Nesse caso, posso vencer a velo- cidade da luz, mas prefiro caminhar ao lado dela. O comandante ainda não havia se pronun- ciado sobre o tal caminho de volta ao solo firme. Chega. Preciso voltar ao meu chão. Quero voltar a pisar firme. Tudo é mais longe para mim, que não tenho penas, apesar de estar voando agora. Pensando bem, duras penas todos temos, não? Perna direita, esquerda, tosse. Direita, esquer- da, criança. Quero pousar. Pensei como se fosse gaivota no mar, procurando um pedaço de terra, por piedade. Eis que escuto um bálsamo de espe- rança na voz metálica do comandante. Ela dá boa noite. Vai falar do processo de descida. Só pode ser. Finalmente. “Atenção, senhores passageiros. Boa noite. Dentro de instantes daremos início ao nosso pro- cesso de descida”. Fui enganada. Ainda faltam uns instantes ingratos. O que ele queria? “Venho aqui só para dizer que agora é uma óti- ma oportunidade de observar o Recife sob as es- trelas. Passageiros à direita, atenção: vocês podem observar uma bela visão privilegiada da Lua”. E a voz calou-se. Nunca havia ouvido isso saindo da cabine de comando. Eu estava à direita. Estiquei o pescoço, cerrei os olhos pela janelinha e ali sorria uma lua gorda, amarela e farta, sem nenhum pudor. Es­ tava tão perto que tive medo de a asa ao meu lado formar mais uma cratera na superfície bri- lhante que flutuava. Temo eu, como se a asa fosse minha. E Recife piscava receptiva, me esperando che- gar lá embaixo. Sorri para a minha visão privilegiada da lua, agradecida pelo comandante poético e médico. Eu esqueci a dor. Fevereiro 2019 | Cidade Nova | 43