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Dois minutos e meio até as nuvens | [email protected] Mini crônicas áreas Por Clarice Freire A autora é pernambucana e publicitária de formação, criadora da página Pó de Lua que deu origem ao livro homônimo publicado pela Editora Intrínseca, finalista do Prêmio Jabuti em 2017 AS ANGÚSTIAS DO CHÃO pesavam mais que toda a bagagem que me atrevo a carregar ali, pe- las nuvens. Aquele fim de tarde multicor e bem delineado que se vê através da janelinha oval me fez pensar na minha vista limitada. Uma imensi- dão inteira indo se deitar e eu só conseguia olhar pela fechadura. As turbinas do avião não param, claro. Todo sossego tem seu custo, mas eu não ouvia mais nada. Depois de muito tempo no ba- rulho, ele e o silêncio soam com notas parecidas. O isolamento do alto me faz bem. Gosto de estar – literalmente – entre as nuvens e sem ne- nhuma possibilidade de contato com o mundo lá embaixo. Lá de cima, sou intocável e estou longe demais para qualquer problema ou agitação me alcançarem ou cansarem. Entre dois desconheci- dos e sem internet, o que me resta sou eu mesma e o silêncio das turbinas, observando a minha fe- chadura para o céu. Chega uma hora das viagens em que as coisas se aquietam e todos parecem entrar num consenso de quietude, especialmen- te enquanto o sol se põe. Deve ser um respeito velado e guardado por dentro que temos pelos fins. Ou recomeços. Depende. Muito antes da hora, o azul-caneta ganha es- paço lá fora. E bem antes do previsto ou sem que eu houvesse autorizado, umas estrelas começam a me cumprimentar em piscadelas preguiçosas. Me assusto. Um tanto grosseira, não respondo aos cumprimentos, algo estava muito errado. O desespero me toma. O que aquelas estrelas es- tavam fazendo ali? A contragosto, olho o relógio e confirmo o que temia: o tempo voou mais de- pressa que a aeronave, e eu já estava muito mais perto de casa do que previa. Dois minutos e meio até as nuvens Cronometrei quanto tempo o avião leva até tocar a primeira nuvem. São dois minutos e meio. O céu não é tão longe assim. Uma série de minicrônicas aéreas – por Clarice Freire As estrelas do chão O solo se aproximava cada vez mais e algo em mim queria frear aquelas estrelas de aparecerem agrupadas em tantas, indiferentes e empolgadas pela noite, que é só delas, soltando-se em liberda- de para o reinado celestial ao qual estão acostu- madas. O mundo é muito injusto. Agora eu sentia inveja daquelas estrelas despreocupadas com o chão e, em um tom de confidência, sussurro pela janelinha oval: “Me deixem ficar aqui. Me deixem ficar nessa paz inalcançável. Me deixem ficar”. A voz abafada do comandante interrompe a minha conversa: “Senhores passageiros, preparar para o pouso”. Ele diz isso com toda crueldade, mesmo sabendo que eu não estava preparada, pensei. Num solavanco que me ignorou solene- mente, o comandante muda o prumo da minha vista e as estrelas se despedem de mim numa fração de segundos. À vista, agora, estava o meu temido chão. Tive de encará-lo. E qual foi a minha surpresa, veja só. Na alta noite em que estáva- mos, a cidade brilhava em suas luzes-estrelas sol- tando piscadelas em sequência desgovernada. E elas me cumprimentavam lá de baixo, grudadas na Terra. Me convidavam a descer, daquele jeito brilhante. E da minha fechadura para o imenso, algo mudou de rumo e quis descer até elas. Voltar para casa, tomar um banho quente e ver que a vida no chão também pode ser bonita. Eu disse: Calma, alma aflita. Estrelas moram no chão. Só depende do ponto de vista. Janeiro 2019 | Cidade Nova | 43