Military Review Edição Brasileira Março-Abril 2014 | Page 40

de adestramento militar — uma que engloba nossas aplicações estratégicas, operacionais e táticas. Mais uma vez, essa crítica não é dirigida a qualquer Unidade, organização ou conceitos militares estratégicos por exclusão; ao invés disso, é uma reflexão crítica sobre a filosofia básica de adestramento que adotamos diariamente. Estamos, todos nós, jantando o falso bife juntos. Nossas Forças Armadas preferem se adestrar na ignorância divina de ações prejudiciais que realizamos à custa de nossas estratégias militares mais amplas? Primeiro precisamos enquadrar o que Baudrillard denomina simulação, e como seus conceitos de simulacro representam o falso bife que as instituições almejam em vez das menos agradáveis refeições “reais”. A Definição de Simulacro nas Considerações Sobre o Planejamento Militar Imagine um casal que passa férias em Las Vegas e está hospedado em um hotel-casino particular, cuja arquitetura interna reproduz a cidade de Veneza, incluindo canais, gôndolas e muitos dos aspectos visuais associados à famosa cidade italiana. O casal curtiu tanto que decidiu aproveitar as próximas férias na verdadeira Veneza, na Itália. No entanto, ao chegar à cidade, o cheiro de mofo dos canais, a multidão de turistas, a grande barreira linguística, a falta de máquinas caça-níqueis e a dificuldade de encontrar a comida norte-americana acabam desapontando o casal. Eles almejam a experiência veneziana artificial que o cassino lhes ofereceu em vez da coisa verdadeira. Em vez de curtir a Veneza “real”, o casal decide voltar a Las Vegas para a versão artificial em suas próximas férias. Isso é um exemplo de como o simulacro ofusca a realidade10. A versão cassino de Veneza não é simplesmente uma fraca imitação da verdadeira cidade italiana. Em vez disso, reflete uma fusão abstrata dos valores sociais ocidentais com os conceitos de entretenimento norte-americano, refeições de bufê, serviço opulento e aspectos pontuais da “Cidade do Pecado”. Isso cria algo totalmente diferente da Veneza, apesar das semelhanças superficiais. Segundo Baudrillard, a simulação pretende ter 38 o que não se possui, enquanto que a progressão do simulacro é criar uma cópia sem o original; algo completamente falso, porém erroneamente interpretado por uma sociedade ou instituição como “real”11. Esse é o aspecto essencial do simulacro; que a sociedade ou a organização aceite a falsa realidade sem criticamente questionar ou perceber. Assim, Cypher, em Matrix, percebe que seu bife é imaginário enquanto outros ao redor dele permanecem com a dádiva inconsciente. Os sociólogos Berger e Luckmann sugerem que o ceticismo e a inovação ameaçam o status quo da realidade adotada como certa em uma instituição, de forma que nossas organizações resistam ativamente a escapar dessa ilusão12. Eu proponho que nossas Forças Armadas enfrentem dois grandes obstáculos relativos à nossa filosofia de adestramento — talvez tenhamos criado uma realidade de instrução completamente falsa, referido como treinamento realista, que, na realidade, é um simulacro, e que nossos costumes institucionais estão nos inibindo a enfrentá-lo para promover mudanças13. Continuamos com o ciclo de engajar adversários em conflitos cujo nosso sucesso tem sido duvidoso, para depois voltar ao adestramento visando desdobramentos futuros. Vamos explorar alguns componentes e processos de instrução empregados no Exército e determinar se eles são simulações ou simulacros, com muito pouco a ver com a realidade. Combatemos um Inimigo Simulado, ou Simplesmente um Simulacro de Nós Mesmos? Considere o inimigo que descrevemos em nossa doutrina de treinamento e o que ele supostamente representa. A nova “ameaça híbrida” é uma complexa mistura de guerrilheiros, insurgentes, criminosos e atores convencionais “entrelaçados em um ambiente dinâmico”14. Embora os Centros Nacionais de Adestramento do Exército tenham focado, na década passada, em cenários de contrainsurgência, com ênfase exclusiva nas ameaças irregulares específicas a cada ambiente projetado, de modo à refletir as várias facções inseridas em cada teatro de operações, a recente mudança para Março-Abril 2014 • Military Review